Saturday, August 26, 2006

Conto Vencedor do Armazém Literário em 21/08/2006

O Velho

Despertara com os raios de sol atravessando a carne, como se a fritassem. Sentia-se estranha. O pescoço doía. Parecia que uma outra Sabina acordara pro mundo. Como se fosse mais forte, mais jovem e decidida. Não que fosse velha, pois aparentava uns vinte e poucos anos, mas conservaria aquela aparência eternamente.
Foi a partir daquela manhã que deixou toda a sua vida pra trás. Família, amigos, namorado. Passou a vagar pelo mundo. Nada era mais importante que seguir em frente. A cada mês, um novo país. A cada manhã, uma nova cidade. Não necessitava de muita coisa, além de si própria. Seus sentidos haviam se aguçado. Desenvolvera a habilidade de conhecer as pessoas e suas almas. Sabia dissuadí-las, provocá-las, influenciá-las. Quase não se alimentava, pois não sentia fome. Não sabia se recebera uma dádiva ou um pesadelo. Só conseguia lembrar de um homem de capa preta, caminhando em sua direção, naquela noite em que o luar clareava os becos escuros da cidade.
Não entendia ao certo quem era ou o que havia se tornado. Monstro, mito ou uma deusa? Só os deuses ou os super-heróis tem poderes e os usam para algum benefício da humanidade. Ela há muito tempo, não sentia nada, nada além de prazer momentâneo que depois se transformava em um grande vazio, em um castelo com um fosso cercado por crocodilos, onde se fechava por uma boa parte do dia, até sair à caça outra vez.
Andava por cidades desconhecidas, por lugares fétidos e luas inconstantes, procurando alguém igual a ela. Tentando localizar o estranho de olhos negros. Só ele poderia lhe explicar a dor, a tentação, a sua ausência de alma e sentimentos.

Os anos passavam para aqueles que Sabina um dia conhecera. Mas pra ela, era como se fosse sempre o mesmo ano. O tempo parecia muito lento. O relógio dava voltas e ela só se dava conta das mudanças de horário, através do sol e da lua. Sentia-se mais poderosa à noite. Durante o dia, andava como uma cidadã comum, mesmo sabendo intimamente que estava longe de todos os outros, os mortais.

Um dia, andando por uma extensa praia, próxima às dunas, um homem de cabelo branco veio caminhando pela beira-mar em sua direção. Cruzaram o olhar por um instante. Ela então o reconheceu. Havia abandonado aquele homem há mais de três décadas. Estava diferente. Um velho. Sozinho, andando como ela. Não a reconhecera, mesmo que o tempo não lhe houvesse passado, ainda que sua aparência continuasse a mesma. E então, pela primeira vez, depois de um longo período, sentiu saudades da família, dos cachorros, dele. Sentiu saudades de chorar. Uma lágrima de sangue caiu na areia. E Sabina seguiu. Não podia voltar.

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