Thursday, December 28, 2006

Com o livro na mão, no dia do lançamento

Convite para o lançamento do livro dia 12/12/2006

Conto publicado no livro "103 que contam", organizado por Charles Kiefer

Espetáculo

O meu caos concebeu a obra-prima da noite. A cortina vermelha se abre lentamente. Rugem os tambores. Entro em cena imponente no palco escuro com a luz incidindo sobre mim, cercado pelo breu à minha volta. Sou Macbeth, o general, futuro rei da Escócia.

Inquieta, me movimento na cadeira no comprimido espaço do camarote do teatro. Analiso o lustre de cristal, enquanto a peça não inicia e a cortina não se abre. Observo a platéia, logo abaixo dos meus pés. As pessoas continuam entrando, procuram suas poltronas e demoram a se acomodar. Sou Julieta, apenas mais uma espectadora entre tantos.

Três feiticeiras se movimentam e contorcem de um lado para o outro. Gritam nos meus ouvidos, me deixam quase surdo. Só escuto zumbidos nos tímpanos, perante o silêncio da platéia. Grito também. As chamo de oráculos imperfeitos. Mando esperarem. Ordeno que fiquem e elas desaparecem na névoa. Tento me concentrar na minha próxima fala. Digo a Banquo que no ar, o que parecia corpóreo, dissipou-se com a respiração do vento. Sou apenas um ator, intérprete de Macbeth, nervoso por ainda não tê-la visto na platéia.

A cortina finalmente se abre e o ator principal entra em cena. É apenas mais uma peça do festival de teatro de Porto Alegre. Respiro fundo após sentir um intenso arrepio. Começo a rir das piadas daquela comédia de costumes. Fixo o olhar, concentrado no palco, absorta em pensamentos. Gostaria de vê-lo abaixo de mim, à minha frente, em meio àqueles objetos do cenário. Não o vejo. Ele é um general e será rei em outro estado, em outro teatro, longe de mim.

Já estou no segundo ato. Minha Lady diz pra não me perder miseravelmente em meus pensamentos. Me sinto perdido há muito tempo. Minha falta de coragem me paralisou até agora. Ao invés de estar com ela, estou aqui, com esse público, nesse teatro lotado. Minha Senhora me disse que tem as mãos da cor das minhas, mas sente vergonha de ter um coração tão branco. O meu é escarlate, trabalha com taquicardia, amplia de tamanho a cada segundo e parece que vai explodir, a cada minuto que procura por ela. Julieta prometeu que vinha me ver.

Penso naquele teatro feito de arames em Curitiba. Gostaria de abandonar os cristais, a pompa e circunstância da sociedade porto-alegrense e estar lá, acompanhando os holofotes, sob a luz da noite que penetra pelas armações de ferro. Na Ópera de Arame eu estaria próxima a ele. Quem é aquele que agora transpõe a porta? É apenas um desses aspirantes a ator. Quisera fosse ele, o meu amor. Cedo demais o vi, sem conhecê-lo, e tarde demais o conheci. Trinta e dois anos pra saber da existência dele. Teria sido mais fácil se tivéssemos nos encontrado antes e eu não precisasse vivenciar tantos fracassos. Teria apenas ele. Queria agora que tivesses meus ossos e eu tuas notícias. Olho para o palco e não te vejo. Vejo a peça em que não queria estar, por não poder ir até você.

A estranha ilusão que imaginei é um medo novo que necessita da dura experiência. Acabo de pronunciar estas palavras e me sinto exatamente dessa forma. Será minha melhor noite de apresentação, pois iniciei com a glória de um general e me encaminharei para o derradeiro fracasso. Programei o espetáculo para apresentar como um presente à Julieta e, no entanto, não a identifico na platéia, entre tantas pessoas e arames. Estaria ela escondida ou simplesmente não a vejo?

Necessito saber notícias tuas a todo dia e toda hora. Sei que me esperaste esta noite. Infelizmente não pude avisar-te. Não consegui um vôo de última hora para ver-te. Mas assim que puder chegar a ti, eu confessarei que te amo. Por enquanto me sinto com uma adaga enfiada no ventre, me sinto morrer e cair. A cada minuto sem ti, parecem dias. Boa noite, querido! Desculpa por não estar te assistindo. A despedida é uma dor tão culposa que estaria dizendo “Boa noite” até que chegasse o dia.

Já quase me esqueci do sabor do medo. Estava pronto para recebê-la esta noite e me entregar a ela, assim como fiz nesta peça. Apresentei com toda minha energia, na esperança de que Julieta estivesse na platéia me assistindo. Deve estar em algum lugar de Porto Alegre. Não veio e não mandou notícias. Sinto um bosque vindo em direção a mim. Não tem mais importância. Grito que não me renderei e me rendo a mim mesmo. Assim, perco a cabeça duas vezes. A cortina se fecha.