Tuesday, August 29, 2006

Nova Publicação No Armazém Literário. Semana de 21/08/2006

O Morador


O dia de sol fugiu da ilha, na hora em que o cortejo passou. No momento do adeus, ao mais antigo morador, a chuva parou.

A imagem continua nítida em minha mente. Sempre como se fosse um vídeo-clipe. O sol repentinamente sumindo, as nuvens negras e carregadas cobrindo o céu, a chuva caindo com uma força nunca antes vista. Como se fosse destruir a ilha, arrancar as árvores, quebrar as vidraças das cabanas e levar tudo em direção ao mar, com uma fúria avassaladora.

O tempo existe pra isso: pra mudar. Nunca acreditei que um ser humano tivesse algum poder pra alterar condições climáticas. Sempre acreditei nos deuses. Esses seres invisíveis que andam por aí, brincando com as coisas, modificando o mundo por onde passam e criando acontecimentos inexplicáveis. Essas coisas que acontecessem na vida da gente e não se sabe nem porquê.

Naquele dia porém, senti uma força incomum, uma revolta que agitou a ilha. Senti medo. Todos moradores sentiram. Isolados pela natureza. Isolados da civilização. Isolados naquele pedaço de terra envolvido pelo mar, pelas ondas.

Matias Corrêa, o habitante mais antigo e sábio da Ilha do Mel, sofreu um ataque cardíaco. Morte súbita. Os nativos se reuniram para o funeral. Foi no momento em que se dirigiam para enterrar o corpo que o tempo mudou bruscamente. Parecia que a ilha iria afundar como aconteceu com Atlântida ou ser levada pelo vento. Até o momento do corpo ser enterrado. E então, quando a última pá de terra foi despejada sobre o caixão, tudo parou: a chuva, o vento, o balanço das árvores. Aos poucos o sol retornou.

Todos voltaram à praia e aproveitaram os resquícios do dia. Após o medo, a destruição, o calafrio e a sensação de que algo muito estranho estava presente. Parecia que uma alma inconformada vagava entre as pessoas, causando a impressão mais desagradável possível. E somente à noite, durante a madrugada, após voltar sozinha de uma festa, me atirar na cama e apagar na mesma hora de tão cansada, acordei com aquele homem me olhando, rindo pra mim. Enxerguei em meio ao quarto escuro, iluminado por uma fresta de luz. Ele parado na porta, com um olhar debochado. Eu apavorada. Até ele entrar no banheiro e sumir. Levantei, acendi o abajur e permaneci acordada.

A porta se abre com violência. Levo outro susto. É apenas a Fernanda, a Sabina e o Raul, voltando embriagados e fazendo escândalo. Sinto-me protegida. Agradeço a companhia e durmo tranqüila.

Amanhece. O sol penetra entre as nuvens. Vou até o farol. Tenho uma visão do horizonte. Sob os raios que me iluminam, os morros à volta e o mar à frente, a natureza se mistura. Será minha última lembrança do alto da ilha.

Entro no barco. Em trinta minutos estarei longe do paraíso. Prometo não voltar. Vou deixar o homem vagando, tentando se definir entre o céu e o inferno, enquanto vive no purgatório, importunando os nativos, sem saber se está vivo ou morto.

A travessia está quase no fim. O barco se aproxima da margem. Puxo a máquina fotográfica para bater uma última foto da ilha, já afastada. Um vulto passa na frente da câmera. Penso que estou ficando louca. Escuto uma risada. Olho pra trás. Ele está sentado no banco que há poucos minutos eu ocupava, sentindo o calor do meu corpo. Me seguiu até ali. Acho que vai me seguir por toda a vida...

Saturday, August 26, 2006

Conto Vencedor do Armazém Literário em 21/08/2006

O Velho

Despertara com os raios de sol atravessando a carne, como se a fritassem. Sentia-se estranha. O pescoço doía. Parecia que uma outra Sabina acordara pro mundo. Como se fosse mais forte, mais jovem e decidida. Não que fosse velha, pois aparentava uns vinte e poucos anos, mas conservaria aquela aparência eternamente.
Foi a partir daquela manhã que deixou toda a sua vida pra trás. Família, amigos, namorado. Passou a vagar pelo mundo. Nada era mais importante que seguir em frente. A cada mês, um novo país. A cada manhã, uma nova cidade. Não necessitava de muita coisa, além de si própria. Seus sentidos haviam se aguçado. Desenvolvera a habilidade de conhecer as pessoas e suas almas. Sabia dissuadí-las, provocá-las, influenciá-las. Quase não se alimentava, pois não sentia fome. Não sabia se recebera uma dádiva ou um pesadelo. Só conseguia lembrar de um homem de capa preta, caminhando em sua direção, naquela noite em que o luar clareava os becos escuros da cidade.
Não entendia ao certo quem era ou o que havia se tornado. Monstro, mito ou uma deusa? Só os deuses ou os super-heróis tem poderes e os usam para algum benefício da humanidade. Ela há muito tempo, não sentia nada, nada além de prazer momentâneo que depois se transformava em um grande vazio, em um castelo com um fosso cercado por crocodilos, onde se fechava por uma boa parte do dia, até sair à caça outra vez.
Andava por cidades desconhecidas, por lugares fétidos e luas inconstantes, procurando alguém igual a ela. Tentando localizar o estranho de olhos negros. Só ele poderia lhe explicar a dor, a tentação, a sua ausência de alma e sentimentos.

Os anos passavam para aqueles que Sabina um dia conhecera. Mas pra ela, era como se fosse sempre o mesmo ano. O tempo parecia muito lento. O relógio dava voltas e ela só se dava conta das mudanças de horário, através do sol e da lua. Sentia-se mais poderosa à noite. Durante o dia, andava como uma cidadã comum, mesmo sabendo intimamente que estava longe de todos os outros, os mortais.

Um dia, andando por uma extensa praia, próxima às dunas, um homem de cabelo branco veio caminhando pela beira-mar em sua direção. Cruzaram o olhar por um instante. Ela então o reconheceu. Havia abandonado aquele homem há mais de três décadas. Estava diferente. Um velho. Sozinho, andando como ela. Não a reconhecera, mesmo que o tempo não lhe houvesse passado, ainda que sua aparência continuasse a mesma. E então, pela primeira vez, depois de um longo período, sentiu saudades da família, dos cachorros, dele. Sentiu saudades de chorar. Uma lágrima de sangue caiu na areia. E Sabina seguiu. Não podia voltar.